Ontem foi o sexto dia do sexto mês do sexto ano do novo milénio. Não sendo exactamente um crente nas profecias do Livro do Apocalipse, abordei o dia com alguma cautela, isto apesar de estar convencido que, se a Besta nasceu ontem, ainda temos de esperar uns anitos até começar a fazer asneiras. Por outro lado, abrir as páginas dos jornais ou ligar a televisão no horário das notícias é prova suficiente que a Besta não nasceu ontem e sempre por cá andou; o formato é que varia. Para outros, mais mediáticos, a Besta já foi bestial, mas agora é simplesmente uma besta quadrada, como se poderá constatar pelo post anterior.
Seja como for, a velha luta entre o Bem e o Mal sempre me fascinou e mergulhei nela numa das recentes inclusões na mesa-de-cabeceira. O livro é Além (1891) de Joris Karl Huymans e tem preenchido algumas noites de insónia.
Além (2006; Lisboa: Assírio & Alvim) foi escrito numa linguagem directa, por vezes chocante, destinada a seduzir o leitor, envolvendo-o com suavidade, para depois o apunhalar, arrancando-lhe as entranhas e atirando o corpo para a valeta. O autor apresenta um escritor francês, de nome Durtal, na Paris dos finais do século XIX, que, através de uma pesquisa histórica intensiva, se propõe escrever uma obra sobre Gilles de Rais, um pedófilo, contemporâneo de Joana d’Arc, que assassinou centenas de crianças na Bretanha do início do século XV, associando-se a rituais satânicos praticados por membros transviados do clero, que rezam missas negras como vingança pela rejeição ou insucesso na vida religiosa dita “normal”. Apesar de repugnante, todos estes parecem apenas coloridos relatos da Idade Média, até que Durtal descobre que a sua Paris tem mais semelhanças com a Idade Média do que julgava possível…
O livro de Huysmans tem várias preciosidades. Escolhi algumas passagens para o vosso deleite.
“A realidade, é bem certo, não perdoa que a desprezem; vinga-se metendo o sonho ao fundo, espezinhando-o, atirando-o em farrapos para um monte de lama!” (p.199)
“Vê as máquinas, o jogo dos pistões nos cilindros: são Romeus de aço dentro de Julietas de ferro fundido. As expressões humanas em nada diferem do vaivém das nossas máquinas.” (p.205)
“Além disso, os edifícios que emergem deste charco caótico de telhados, a Notre-Dame, a Sainte-Chapelle, Saint-Séverin, Saint-Étienne-du-Mont, a torre Saint-Jacques, ficam afogados na deplorável massa dos monumentos mais novos. De forma nenhuma estou interessado em contemplar ao mesmo tempo a Ópera, esse espécime de arte para caixeiras bem vestidas, o arco de ponte chamado do Triunfo, e o candelabro que é a Torre Eiffel!” (pp.244-5)
Na contracapa:
"Em 1891, Além foi considerado uma grande audácia e multiplicou-se na tiragem até às dezenas de milhares. Como um desses malabaristas que mantêm vários objectos no ar, Huysmans concentrou temas de várias frentes no seu romance, todos a maior ou menor distância de uma mesma luta: a que confronta dois poderes, do Bem e do Mal, a que opõe desde a Idade Média a igreja de Roma e o seu reverso satânico. Há, como ilustração de tudo isto, a história de Gilles de Rais, monstruoso pedófilo dos tempos de Joana d'Arc, a história da promiscuidade das mais altas figuras da Igreja com os praticantes da magia, o relato de uma missa negra em Paris, uma aventura em lençóis um tanto frios mas sem o véu de nenhum disfarce sobre a sua sexualidade malsã. Mas também o escritor J.-K. Huysmans num ponto alto da sua obra. O que fez André Breton manifestar-se, nas primeiras páginas de Nadja, como grande devedor de um seu ensinamento: saber levar «ao extremo essa discriminação necessária, vital, entre o elo de tão frágil aparência que pode ser-nos do máximo socorro, e o aparelho vertiginoso das forças que se conjuram para meter-nos ao fundo»."
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