sexta-feira, outubro 31, 2008

Everybody gets a little lost sometimes...

Bairro alto. Galeria ZDB. 30 de Outubro de 2008.

Depois de uma experiência inesquecível com os Godspeed You Black Emperor! há uns anos atrás no Teatro Sá da Bandeira, desta vez assisti a uma versão stripped-down de um colectivo pós-rock: Thee Silver Mount Zion Memorial Orchestra and Tra-la-la Band with Choir.

A banda de Efrim Menuck é extremamente fluida na forma como se apresenta em palco. Desta vez, guitarra eléctrica, bateria, contra-baixo e dois violinos bastaram para interpretar temas dos álbuns mais recentes do colectivo de Montreal. Antes de mais, dizer que é inacreditável que uma banda quase acústica toque tão alto (!), mas acrescentar que a voz dos seus membros contribui para um caos sonoro permanente, que subsiste mesmo nos momentos mais calmos da interpretação. A razão prende-se com o “choir” de que fala o longo nome da banda, que assume a desarmonia das suas vozes como imagem de marca, levando o ouvinte a questionar-se sobre se não se trata de um puro e simples desafinar colectivo, por sinal bastante competente.

Os ASMZ são polémicos e políticos. Os temas longos e as letras particularmente esparsas escondem, por vezes, o carácter contestatário da banda inspirada de Efrim (na foto). God Bless Our Dead Marines é uma marcha fúnebre que expressa a revolta de uma geração contra o instigar do medo do terrorismo pela Administração Bush. As letras não deixam dúvidas sobre a hipocrisia dos líderes face à mortandade da guerra.

There's fresh meat in the club tonight
God bless our dead marines
Someone had an accident
Above the burning trees
While somewhere distant peacefully
Our vulgar princes sleep
Dead kids dont get photographed
God bless this century

God Bless Our Dead Marines demonstra esta veia intervencionista, embora com um cunho pessoal assumido, o que a torna emocionalmente arrasadora. Cantada de forma apaixonada e sofrida, é difícil ficar indiferente à mensagem. Arrepiei-me quando comecei a escutar este crescendo, simultaneamente épico e funéreo:

Lost a friend to cocaine
A couple friends to smack
Troubled hearts map deserts
And they rarely do come back
Lost a friend to oceans
Lost a friend to hills
Lost a friend to suicide
Lost a friend to pills
Lost a friend to monsters
Lost a friend to shame
Lost a friend to marriage
Lost a friend to blame
Lost a friend to worry and
Lost a friend to wealth
Lost a friend to stubborn pride
And then i lost myself

Quanto à música, há claramente pontos de contacto com as bandas mais conhecidas de Montreal e que gravam no mesmo estúdio Hotel 2 Tango, como sejam os Arcade Fire ou os Godspeed You Black Emperor. No entanto, os ASMZ parecem ter dado um passo atrás, recusando entrar em “excessos” melódicos e preferindo a distorção das guitarras, os riffs dissonantes e a cantoria desafinada como imagem de marca. Por isso mesmo, têm um número de fãs mais diminuto e menos afoito que, apesar da recepção calorosa, estiveram longe de entrar em transe ou histeria colectiva. Um concerto eficaz para quem não conhecia a banda, mas que deixa a chorar por mais quem os adora.

Set List:

1. 13 blues for thirteen moons
2. One million died to make this sound
3. God bless our dead marines
4. Take these hands and throw them in the river
5. There is a light
6. Microphones in the trees

domingo, outubro 26, 2008

Momentâneo Lapso da Razão

Até que ponto é que o cultivo da racionalidade tolhe as emoções do ser humano? Se passarmos grande percentagem do nosso tempo de vigília a usar o cérebro, será que sofreremos uma diminuição das nossas capacidades afectivas?

Se coração e razão forem encarados como um terreno de cultivo com uma área fixa, e os recursos disponíveis para investir forem limitados, os cuidados prestados a uma das plantações implicará o negligenciar da outra, e o consequente fracassar da potencial colheita. Sempre que me concentro por longos períodos de tempo em projectos profissionais, sinto que o meu lado emocional morre um pouco. Tenho de ir comprar fertilizante...

1970. Trespass - Genesis

Antes de terem a sua reputação musical arruinada pela influência nefasta da carreira a solo de Phil Collins, os Genesis faziam a música mais melódica à face do planeta. Não é apenas um elogio desmesurado da minha parte. Há um espantoso esbanjar de melodias nos primeiros quatro ou cinco álbuns dos Genesis (período de 1970 a 1975) que daria para uma banda pop ter assegurada uma série consecutiva de êxitos de vendas. Os Genesis, porém, articulavam essas melodias em longos temas, pouco ajustados à dimensão de singles, sem se preocuparem com o aparente desperdício melódico presente nos seus LPs de vinil.

Em Trespass (1970), o primeiro álbum "maduro" da banda, as orquestrações são subtis, mas frequentemente luxuosas. Os Genesis alternam momentos de flautas pastorais e com crescendos poderosos sustentados pelas teclas de Tony Banks e na voz firme e suave de Peter Gabriel. Este último é o génio óbvio por trás da criação artística e coreográfica da banda neste período. Não há qualquer tipo de arrogância ou pedantismo subjacente à música, mas a confiança que transparece nas interpretações é inegável.

Trespass é um disco que toca as margens do que viria a ser conhecido como rock progressivo ou prog-rock, mas evita cair na armadilha do facilitismo e dos excessos de orquestração cometidos pelos Yes. A subtileza dos arranjos é sobretudo visível em Stagnation, o meu tema preferido. O tal desperdício melódico atinge aqui a apoteose, através de uma estranha, mas eficaz mistura de folk britânico com rock progressivo. Ah! E as teclas! Aquelas teclas gentis que debitam melodias celestiais umas atrás das outras, como se não houvesse amanhã...

Mas Peter Gabriel e os restantes Genesis ainda têm tempo para se enfurecer em The Knife. Uma mistura explosiva de prog-rock e acelerações típicas de proto-metal. A combinção é extremamente eficaz e permitiu ao tema tornar-se o mais influente do álbum e um favorito ao vivo para a maioria dos primeiros fãs da banda. As interpretações de Gabriel também ajudaram The Knife a assumir o estatuto mítico que merece.

Sem mais delongas, aqui ficam Stagnation e The Knife (numa versão impressionante de 1973, já com Phil Collins na bateria).




Projecto 200 anos de música. A ideia é simples. Ao longo de duzentas entradas, o Piano na Floresta vai listar duzentas obras musicais, uma por cada ano, iniciando a contagem decrescente a partir do ano 2000. Se tudo correr conforme planeado, será possível identificar um disco ou uma obra composta em cada um dos anos no intervalo entre o ano 1800 e o ano 2000. Não há limitações de género musical. A qualidade e a reputação da obra não constituem critério de escolha, embora se entenda que ela é, de algum modo, representativa do ano em questão.

sexta-feira, outubro 24, 2008

1971. IV - Led Zeppelin

O ano de 1971 é especial. O autor deste blog nasceu no mesmo ano em que o quarto álbum dos Led Zeppelin foi lançado. Antes de prosseguirmos, um aviso prévio: não gosto de metal, em qualquer uma das suas formas (heavy metal, death metal, trash metal, rap metal, etc.). Este facto, aparentemente limitador em alguém que adora música, torna esta escolha um facto notável. Na verdade, Led Zeppelin IV, Zoso, ou simplesmente IV, é um dos discos mais influentes para qualquer banda de metal que se preze. Vejamos as razões que conduziram à minha escolha.

Se é verdade que o início do disco é rock'n'roll em estado puro (Black Dog e Rock and Roll), os temas seguintes são de uma versatilidade invulgar para o início dos anos 70. À semelhança de outros, também eu considero que os anos 70 são, grosso modo, a pior década da música popular, até porque os momentos de criatividade genial da segunda parte da década de 60 teriam, inevitavelmente, de descambar numa longa ressaca. Por isso mesmo, o trinado do bandolim da terceira faixa, The Battle of Evermore, mostra uns Led Zeppelin completamente transfigurados, falando do Príncipe da Paz, da Rainha da Luz e dos anjos de Avalon. Lírico. Místico. A participação da sacerdotisa Sandy Denny completa o quadro onírico.

Mas é evidentemente Stairway to Heaven que marca o álbum. Oito minutos para a história. O tema justifica a razão pela qual os Led Zeppelin são uma banda que desafia categorização. A guitarra dedilhada e a flauta que abrem Stairway to Heaven são lentamente substituídas por um crescendo musical que culmina num debitar de energia típico da banda, mas que exige ouvidos menos conformistas e mais audazes. Se é verdade que qualquer estudante de guitarra clássica aprende aqueles acordes iniciais como uma forma de culto à banda, também não é menos verdade que muitos deles nunca chegam apreciar toda a intensidade de Stairway to Heaven devido a uma insuficiente versatilidade no domínio do tema.

A influência do blues rock em Led Zeppelin IV é notável e estende-se à maioria dos seus temas. Tal como acontece com os Doors, para quem o blues era o core da música, devidamente enquadrado na poesia de Jim Morrison, as orquestrações mais cuidadas dos Led Zeppelin não diluem a influência dos blues, assumidos do primeiro ao último momento em IV. A originalidade reside na mescla única da voz que desafia classificação de Robert Plant, a guitarra do virtuoso Jimmy Page e o ritmo poderoso imposto pela bateria de John Bonham e pelo baixo marcado de John Paul Jones. When the Levee Breaks é, sob esse aspecto, Zeppelin em estado puro: directo, confiante e arrebatador.

The Battle of Evermore (mp3)
When the Levee Breaks (mp3)

Projecto 200 anos de música. A ideia é simples. Ao longo de duzentas entradas, o Piano na Floresta vai listar duzentas obras musicais, uma por cada ano, iniciando a contagem decrescente a partir do ano 2000. Se tudo correr conforme planeado, será possível identificar um disco ou uma obra composta em cada um dos anos no intervalo entre o ano 1800 e o ano 2000. Não há limitações de género musical. A qualidade e a reputação da obra não constituem critério de escolha, embora se entenda que ela é, de algum modo, representativa do ano em questão.

sexta-feira, outubro 10, 2008

1972. Pink Moon - Nick Drake

As emoções escravizam a razão e retiram discernimento ao mais esclarecido dos intelectuais. Muitos génios musicais foram submetidos à ditadura das paixões, que os impulsionaram a compor obras para a eternidade. Outros, acometidos por depressões severas, caíram na obscuridade após a sua morte, para serem reconhecidos apenas por uma mão-cheia de almas gémeas.

Nick Drake morreu em 1974, aos 26 anos, de uma overdose (acidental?) de anti-depressivos, e quis o destino que este fosse o seu último álbum de originais. O disco exala uma tristeza e uma melancolia que resultam da utilização exclusiva de guitarra acústica e voz na maioria dos temas, acompanhadas ocasionalmente pelo piano. As melodias são simples, belas e plenas de sentimento. Reza a lenda que Drake gravou Pink Moon em duas sessões de 2 horas, iniciadas há meia-noite, sem recurso a takes alternativos. Neste particular, Pink Moon representa um contraste significativo com o disco anterior, Bryter Layter (1970), no qual Drake emprega orquestrações mais elaboradas, em particular uma luxuosa secção de cordas em Hazey Jane II, que os Belle and Sebastian certamente não desdenhariam.

Em Pink Moon, a duração é inversamente proporcional à intensidade da música. A voz de Nick Drake e a sua guitarra acústica uniram-se para criar uma obra-prima com apenas 28 minutos. Solidão, isolamento e alienação social são temas preponderantes em todos os trabalhos de Drake, mas atingem aqui a sua mais profunda e sentida expressão. Até o surrealismo da capa, fortemente influenciada por Salvador Dali, contribui para o ambiente de alienação, depressão e abandono presente no disco.

As múltiplas referências ao suicídio ao longo do álbum levam-nos a pensar que Drake desistia. Há momentos em que não vale a pena lutar; o vazio progride para nos engolir. Em Pink Moon:

"I saw it written and I saw it say
Pink moon is on its way
And none of you stand so tall
Pink moon gonna get you all
It's a pink moon it's a pink, pink, pink, pink, pink moon."

Em Harvest Breed:

"Falling fast and falling free you look to find a friend
Falling fast and falling free this could just be the end
Falling fast you stop to touch and kiss the flowers that bend
And you're ready now for the harvest breed."
A suavidade da voz de Drake e a instrumentação esparsa contribuem para esse vazio, e nem o final luminoso com From the Morning ajuda a retirar a Pink Moon o epíteto de “um dos álbuns mais melancólicos de sempre”.
Cada nota, cada palavra, cada silêncio. Um dos raros momentos em que a música me fez sentir frágil...

Projecto 200 anos de música. A ideia é simples. Ao longo de duzentas entradas, o Piano na Floresta vai listar duzentas obras musicais, uma por cada ano, iniciando a contagem decrescente a partir do ano 2000. Se tudo correr conforme planeado, será possível identificar um disco ou uma obra composta em cada um dos anos no intervalo entre o ano 1800 e o ano 2000. Não há limitações de género musical. A qualidade e a reputação da obra não constituem critério de escolha, embora se entenda que ela é, de algum modo, representativa do ano em questão.

domingo, outubro 05, 2008

1973. Head Hunters - Herbie Hancock

Futurista é o mínimo que se pode dizer deste trabalho de Herbie Hancock, normalmente enquadrado no contexto do movimento de fusão jazz-rock do início dos anos 70. Sublinhe-se fusão jazz-rock (e não rock-jazz), porque a direcção do movimento é relevante na qualidade da música produzida. Quebrando fronteiras no domínio do jazz, muitos músicos com reputação estabelecida, como Miles Davis ou Herbie Hancock, enveredaram por sonoridades rock e funk, tingidas de influências exóticas, nomeadamente das Caraíbas, da América do Sul e de África.

No caso de Herbie Hancock, Head Hunters constitui uma abordagem radical a este movimento, pela utilização de múltiplos sintetizadores, marimbas e diversos instrumentos de percussão de raiz africana. O álbum é caracterizado por extensa improvisação, como é típico do jazz, mas a sonoridade original fornecida pela diversidade de instrumentos contribui para que essa improvisação soe mais a um delírio de funk alucinado do que um quinteto de standards de jazz.

É hoje plenamente reconhecido que os temas Chameleon e Watermelon Man foram o ponto de partida da carreira de muitos músicos actuais, como foram os casos de Jamiroquai ou US3. Mas a extensão do impacto de Head Hunters pode chegar até ao bem conhecido duo francês de música electrónica Air, como é visível no tema que encerra o álbum, Vein Melter.


Nota: Depois de quase 50 milhões de cópias vendidas, a escolha óbvia para 1973 era The Dark Side of the Moon dos Pink Floyd. Podem ler uma crítica a este disco aqui.

Projecto 200 anos de música. A ideia é simples. Ao longo de duzentas entradas, o Piano na Floresta vai listar duzentas obras musicais, uma por cada ano, iniciando a contagem decrescente a partir do ano 2000. Se tudo correr conforme planeado, será possível identificar um disco ou uma obra composta em cada um dos anos no intervalo entre o ano 1800 e o ano 2000. Não há limitações de género musical. A qualidade e a reputação da obra não constituem critério de escolha, embora se entenda que ela é, de algum modo, representativa do ano em questão.